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segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Menos cesarianas, mais qualidade

2007/11/26Pais&Filhos
Maria João Amorim

Valores baixos de partos cirúrgicos correspondem a bons serviços de saúde, números altos são sinal de cuidados dúbios. É essa a convicção da natureza e da ciência. Portugal detém uma das mais elevadas taxas de cesariana da Europa.
«Como é que uma maravilhosa intervenção de salvamento se tornou um modo banal de nascer?», interroga-se o famoso médico francês Michel Odent, para muitos um filósofo do parto, no seu mais recente livro dedicado à técnica que ele próprio ajudou a trazer ao mundo, a cesariana.


Odent, cirurgião de formação, foi um dos primeiros médicos a realizar partos cirúrgicos com segurança, tendo, por isso, acompanhado de perto a história da cesariana nos últimos 50 anos. No livro «A cesariana: operação de salvamento ou indústria do nascimento?» (editado em Portugal pela Miosótis), o especialista apresenta uma visão muito crítica sobre a forma como se nasce actualmente, atirando questões lapidares: «porque é que há sítios onde os nascimentos por cesariana são menos de 10 por cento e outros em que são mais de 50 por cento?» ou «que sabemos nós das consequências a longo prazo do nascimento por cesariana?».

O tom é de censura, mas Michel Odent conhece bem as virtudes do recurso ao bisturi durante o parto. Tão bem que não subscreve a vulgarização da técnica. Não se trata, afinal, de uma operação de salvamento?...

Vulgar é o adjectivo correcto para classificar o parto por cesariana actualmente. Em 2005, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), 34,7 por cento dos bebés em Portugal nasceram numa sala de operações. Em números concretos: 37 194 cesarianas foram realizadas nos hospitais e maternidades portuguesas.

Um número superior à media europeia, situada nos 27-28 por cento, e substancialmente mais elevado do que a taxa recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ¿ 10 a 15 por cento.

A tendência é para o aumento do número de nascimentos por cesariana, afirma o presidente do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, Luis Graça. Assim aconteceu nos EUA e na Europa, assim acontecerá em Portugal. Por vários motivos, sublinha o responsável.

O «risco de litigância judicial» é um deles: «Quando ocorre um incidente intra-parto, com repercussão sobre a vitalidade do recém-nascido, juízes e advogados têm sempre como primeiro argumento acusatório o facto de os médicos não terem optado pela cesariana.»

A vontade das mulheres é outro: «Cada vez mais as grávidas solicitam que seja praticada uma cesariana electiva para não terem de passar pelo incómodo do trabalho de parto - na Austrália, uma em cada dez cesarianas já é feita por expressa decisão da grávida e em Portugal isso é cada vez mais frequente», afirma Luis Graça.

De facto, o número de partos cirúrgicos não tem parado de aumentar em Portugal. Em 2002, a cifra atingiu os 30,5 por cento. Um ano depois, nova subida para 32,3 por cento. E em 2005, a taxa de cesarianas alcançou o expressivo valor de 34,7 por cento, o mais alto de sempre e um dos maiores a nível europeu. Países como o Reino Unido e a França detêm taxas substancialmente inferiores: 23 e 19,6 por cento respectivamente.

Baixar os números com segurança
A redução das taxas de cesariana é considerada pela OMS um indicador de qualidade dos cuidados de saúde materno-fetais. Médicos e enfermeiros em Portugal têm contestado os valores nacionais e alguns hospitais já desenvolveram estratégias para diminuir o número de nascimentos cirúrgicos.

É o caso da Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, a braços com uma taxa de cesarianas de 34 por cento em 2006. O trabalho já começou. De acordo com Clara Soares, coordenadora da Urgência, está a ser feito um «levantamento exaustivo» de todas as cesarianas realizadas na urgência da maternidade no ano passado com o objectivo de perceber, em concreto, as razões que levaram à opção pelo parto cirúrgico.
O estudo ainda não está totalmente concluído, mas a tomada de consciência desses motivos por parte dos profissionais já teve um efeito nos números de 2007: nos primeiros seis meses, a taxa de cesarianas não chegou aos 30 por cento (29,8), um valor bastante inferior ao registado no mesmo período em 2006 ¿ 34,6 por cento.

«Mesmo que suba, a taxa deste ano já é melhor do que a do ano passado», afirma Clara Soares, que encara a redução do número de nascimentos cirúrgicos na MAC como uma «prioridade».

A médica faz questão de sublinhar que nenhuma cesariana foi evitada pondo em causa a saúde do bebé: «A taxa de complicações decorrentes do parto mantém-se dentro dos valores de referência internacionais. Este ano tivemos até um número ligeiramente inferior.»

O grande conjunto de cirurgias identificado, esclarece Clara Soares, ocorreu na sequência de induções de parto sem indicação clínica. Uma intervenção que, feita numa altura em que o colo do útero ainda não está suficientemente maduro, pode ter como desfecho a cesariana por dificuldades na progressão do parto.

O receio com o bem-estar do bebé foi outro dos motivos frequentemente invocados para realizar uma cesariana. A MAC adquiriu recentemente um novo sistema de monitorização fetal que permite uma avaliação mais fidedigna do estado do bebé. A redução do número de cirurgias verificada este ano é um sinal da sua eficácia.

«Banalizou-se a ideia de que a cesariana é uma panaceia, mas é preciso não esquecer que estamos a falar de uma grande cirurgia, associada a índices de mortalidade e morbilidade mais elevados do que no parto normal», critica Clara Soares.

Do lado das mulheres, também há responsabilidades: «Já não é só uma questão de fugir à dor, é também um problema de tempo. As mulheres têm hoje a vida muito programada, não querem trabalhos de parto muito longos. É uma 'perda de tempo' estar muitas horas à espera que o bebé nasça.»
Até onde pode baixar a taxa de cesarianas na MAC? Para já, até aos 30 por cento, diz Clara Soares. «Novas metas, só depois de concluída a avaliação dos casos registados em 2006.»

Até aos 25 por cento e mais além
Mas é a Norte que está o maior exemplo da redução segura da taxa de cesarianas. Desde 2001 que os responsáveis do Hospital de São João (HSJ), no Porto, estão preocupados com esta questão. Os 36,5 por cento de cesarianas registadas nesse ano foram o ponto de partida para a mudança.

Nunca o hospital tinha registado um valor tão alto de nascimentos na sala de operações. Diogo Ayres de Campos, director da Urgência de Ginecologia e Obstetrícia do HSJ explica que o primeiro passo foi a distribuição pelos profissionais de um documento a chamar a atenção para os riscos do parto cirúrgico.

«Seguidamente, instituímos a discussão diária de todos os casos ocorridos na urgência e a apresentação pública do número de cirurgias por equipa.» Primeiros resultados, um ano depois de arrancar com estas medidas organizativas: a taxa de cesarianas desceu praticamente dez pontos percentuais.

Diogo Ayres de Campos recorda as discrepâncias «chocantes» registadas na altura entre as várias equipas da urgência: «Umas apresentavam taxas de cesariana de 16 por cento e outras de 42 por cento...» A crítica solta-se das suas palavras: «Por vezes, o hospital é uma extensão do consultório privado.»

Actualmente, o HSJ regista uma taxa de partos cirúrgicos de 27,2 por cento, mas a meta é chegar aos 25 por cento. Uma fasquia que Diogo Ayres de Campos considera «perfeitamente» atingível. Basta apenas que a postura dos profissionais seja um pouco mais «colectiva». Sendo certo, no entanto, que para haver uma redução efectiva do número de cesarianas, a mudança «tem de vir de cima».

Já Luis Graça não acha «excessivamente importante a preocupação com a baixa 'forçada' do número de cesarianas».

O médico ressalva que o incremento da taxa de partos cirúrgicos foi paralela à diminuição da mortalidade e morbilidade perinatal, «cujos níveis portugueses são dos melhores do mundo». Acredita, no entanto, que «com alguma pedagogia», a taxa de cesarianas possa baixar dois a três pontos percentuais.


Preocupação científica
É preciso bem mais do que pedagogia, diriam os investigadores canadianos que conduziram um estudo retrospectivo sobre estratégias para baixar eficazmente o número de cesarianas sem pôr em causa a saúde de mães e bebés.

«A taxa de cesarianas pode ser reduzida com segurança se os profissionais de saúde analisarem e modificarem as suas práticas», escreveram os cientistas na edição de Março da revista Birth. A preocupação com a taxa canadiana de nascimentos cirúrgicos - 22,5 por cento em 2002, o valor mais alto de sempre - foi o mote da investigação.

«A identificação das grandes barreiras a remover é a chave do sucesso», acrescentam os investigadores, que elegeram a auditoria dos números de cirurgias como uma das bases sobre a qual deve assentar a mudança. O resto, depende de estratégias multifacetadas. Certo é que é possível baixar o número de cesarianas praticado actualmente. Sem medos.

Plano Nacional de Saúde estipula redução até aos 20 por cento
É mais um exemplo de medidas que não saem do papel. O Plano Nacional de Saúde, lançado em 2004, estipula que, até ao final da década, a taxa de cesarianas em Portugal deve ser reduzida para 20 por cento. O plano determina também que o número de cirurgias deve ser contemplado nos indicadores de qualidade utilizados para monitorizar o desempenho dos hospitais.

A dois anos do final do prazo, o número de partos cirúrgicos não só não diminuiu como escalou progressivamente. Portugal detém uma das mais elevadas taxas de cesariana da Europa - 34,7 por cento. Muito superior aos 23 por cento verificados no reino Unido ou aos 22 por cento registados em Espanha.

Luis Graça, presidente do Colégio de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, diz que existe uma recomendação oficial do Ministério da Saúde para que a taxa de cesarianas não exceda os 30 por cento.

O responsável sublinha que este tema será alvo de discussão no seio da nova Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal e que, na reunião que terá lugar em Dezembro, irá propor a formação de um grupo de trabalho para elaborar um relatório sobre o assunto no prazo de seis meses.
Os números do privado
Sobe para o dobro a percentagem de cesarianas efectuadas no sector privado em Portugal. Em 2005, nas unidades privadas de saúde, mais de 65 por cento dos bebés nasceram na sala de operações.

Há mesmo instituições onde a taxa de intervenções cirúrgicas no parto é superior a 85 por cento. A maioria das cesarianas são realizadas por indicação prévia. Uma vez que os obstetras que assistem partos no sector privado raramente estão inseridos numa equipa, a direcção do hospital não tem margem para impor normas ou protocolos. Cada um faz o que quer. E muitas vezes, a sintonia entre grávida e médico é perfeita. Todos os caminhos vão dar à cesariana.

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